Em 1957, o escritor soviético Vladimir Bogomolov escreveu um conto chamado Ivan, obra de estilo narrativo similar a um relatório de campanha militar. A história estava centrada na vida de um garoto que, ao ter sua família morta durante a guerra (Segunda Guerra Mundial), passa a trabalhar como espião para o Exército Vermelho. Seu ódio ao inimigo e a incrível disposição para atuar em campo fez com que se destacasse em suas funções e se tornasse conhecido e querido em um determinado QG.
Por se tratar de uma história de forte cunho nacionalista e a despeito de sua peculiar estrutura narrativa, a Mosfilm se interessou em adaptar a obra para o cinema. O estúdio já havia conseguido impressionar a comunidade cinematográfica com o estupendo Quando Voam as Cegonhas (1957), de Mikhail Kalatozov, obra de cunho bélico muitíssimo bem realizada e vencedora da Palma de Ouro em Cannes. Agora, de posse de outro promissor material literário (sempre muito presente no cinema soviético), os produtores queriam emplacar mais um sucesso cinematográfico e entregaram a tarefa ao roteirista Mikhail Papava, que deveria escrever o seu roteiro da forma mais fiel possível à história narrada em Ivan.
O filme começou a ser rodado em 1960, mas a empreitada não demorou muito tempo. O estúdio não gostou do rumo que a obra seguia e resolveu nomear o recém-formado Andrei Tarkóvski como o novo diretor da película. Mas a Mosfilm não esperava que o novato fosse fazer tantas modificações na concepção geral da obra e no roteiro. Ao lado de Andrei Konchalovsky, escreveu uma outra versão para o conto (que foi odiada pelo autor) e iniciou o processo de filmagens. As modificações acabaram, por fim, sendo aceitas e o filme foi um grande sucesso, ganhando o Leão de Ouro no Festival de Veneza.
Tarkóvski retirou o eco da narrativa militar e realizou um filme plenamente humano, uma obra que traz elementos de uma infância passada (um idílio de paz) versus a violência de uma infância durante a guerra, pontuada por um ódio e um desejo insaciável de vingança. O novo título dado ao filme pelo diretor, A Infância de Ivan, traz essa dualidade entre o mundo pré-guerra e o mundo em guerra. O mesmo garoto sorridente que olhava através de uma teia de aranha e sorria para a mãe, chamando sua atenção para o canto de um cuco, no prólogo da obra, é o pequeno soldado que embarcará no território alemão em busca de pistas e informações para o Exército Soviético.
Em meio a essas diferentes fases da vida e em um curto de espaço de tempo (pelo menos quatro anos, uma vez que a URSS só se torna inimiga da Alemanha em 1941, quando o Pacto Germano Soviético é quebrado por Hitler), o espectador percebe que o Ivan passou por uma verdadeira metamorfose e essa sensação é perfeitamente clara na prodigiosa interpretação de Nikolai Burlyaev, então com 15 anos.
Passado e Presente
Talvez por aparecer dentro de uma realidade onírica, o passado ganhe mais contraste em relação ao presente do que se fosse exposto como um prólogo linear ou em uma narrativa paralela. A questão do sonho que aparece esporadicamente pode até ser lida como um eco da memória dos tempos de paz. Cada vez mais esparsada e com constituições estéticas diversas, como a magnífica sequência do poço, onde temos um inteligente jogo de percepção; ou a cena de Ivan com a garota das maçãs, que recebe um tratamento em negativo ao fundo. Cada sonho ganha uma iluminação e composição de imagem específicas, o que não os descaracteriza como memória, mas pontua essa alteração pessoal que a imagem do passado vai tendo com o tempo e, se virmos essa situação como oposição ao presente, as nuances utilizadas pelo diretor acirram ainda mais a distância de um tempo de paz oposto ao presente de guerra e morte.
A memória volta a aparecer com a derrocada nazista, quando os soviéticos tomam Berlim. Livros, arquivos e pastas diversas estão espalhados pelo salão principal e é onde alguém lê o destino dos prisioneiros soviéticos: fuzilamento ou enforcamento. A foto de Ivan (memória) é reconhecida por um companheiro militar (se podemos dizer assim) e mais uma vez temos a oposição colossal entre passado e presente. Mesmo que se possa reconhecer um ódio absoluto no olhar do Ivan prisioneiro, a visão que o soldado tem da sala dos enforcamentos e todo o seu entorno consegue deixar a situação ainda mais lancinante. Tarkóvski leva até os últimos momentos essa grande oposição entre os dois mundos, com exceção, talvez, da última cena, quando Ivan, numa brincadeira, corre atrás de uma garota. É importante observarmos que isso só acontece DEPOIS da morte do jovem no mundo presente. E nessa memória do passado (ou não seria uma memória, seria uma projeção do garoto em busca de um desejo, no início da puberdade?) é bruscamente interrompida quando esbarra em uma árvore. E então o filme termina. Independente de qual for a leitura do espectador, essa interferência vinda do mundo onírico – seja como memória ou como possibilidade futura – marca o fim das coisas para Ivan, em qualquer um desses mundos. Sua infância, sua sexualidade, seus prazeres como homem em formação e como ser humano lhes foram negados pela guerra. De bom, em sua vida, apenas houve a infância. Ou parte dela.
Outros Temas
As únicas sequências de que não gosto em A Infância de Ivan são relacionadas à jovem Masha, especialmente a sequência que ocorre no bosque de bétulas. Não vejo nenhuma justificativa dramática ou mesmo narrativa para um diálogo frouxo e deslocado da trama geral, como o que acontece ali. Aliás, se a presença da personagem se resumisse ao primeiro flerte, ainda numa das partes do QG, sua participação seria aceitável, porque serviria como ponte de construção psicológica para os dois soldados. Mas a longa sequência entre as árvores só tem como ganho a belíssima captura de imagem e som, com destaque para a cena em que Masha é beijada, tendo ao fundo o onipresente som do pica-pau. Nada mais justifica a existência da cena e, mesmo a tentativa do diretor em tornar Masha uma espécie de subtrama (aparecendo brevemente mais duas vezes) sua aparição não consegue emplacar um sentido orgânico no filme, destoando de todo o restante.
Sendo o primeiro longa-metragem de Andrei Tarkovski, A Infância de Ivan se consagra como uma das melhores estreias de diretores no cinema. Além disso, o filme está repleto de referências imagéticas e poéticas que seriam usadas muitas outras vezes pelo diretor em seus seis longas vindouros.
Ivan é uma ode à tristeza. A guerra é trabalhada por Tarkóvski como opositora, inimiga e destruidora da vida, e muito mais que isso, a guerra se torna um evento capaz de fazer com que toda a memória do passado seja diminuída e dê lugar a um presente que envolve, unicamente, eliminar o inimigo e sobreviver a qualquer custo. Tentativas como a apreciação da arte (pintura e música, só para citar dois exemplos do filme) e a ocorrência do amor, são postos de lado. Os exemplos são sempre os mesmos, em todos os tempos. E por mais triste que pareça, há muitos Ivans hoje habitando países em guerra civil ou atacados por outros países. A guerra persiste roubando infâncias e vidas. O homem parece não aprender lições de humanidade.
A Infância de Ivan (Ivanovo detstvo) — União Soviética, 1962
Direção: Andrei Tarkovski
Roteiro: Mikhail Papava, Andrei Tarkovski, Andrei Konchalovski (baseado na obra de Vladimir Bogomolov).
Elenco: Nikolay Burlyaev, Valentin Zubkov, Evgeniy Zharikov, Stepan Krylov, Nikolay Grinko, Dmitri Milyutenko, Valentina Malyavina, Irina Tarkovskaya
Duração: 95 min.